janeiro 30, 2008
A desconstrução do imaginário romântico do Al-Andalus: as estórias de mouros e princesas cristãs de Chateaubriand
Na transição do século XVIII para o século XIX, várias almas sensíveis atormentadas com os avanços do cosmopolitismo das Luzes, da Razão, dos Direitos Humanos universais, e, sobretudo, alarmadas com a Revolução Industrial e o crescente igualitarismo liberal, refugiaram-se num passado, real ou imaginado (a maior parte das vezes imaginado). Uma destas almas sensíveis, que empreendeu uma “fuga para trás” – e, por isso, é justamente considerada como fundadora do romantismo francês –, foi a de François-René, mais tarde visconde de Chateaubriand (1768-1848).
Em inícios do século XIX, após uma viagem a Espanha, Chateaubriand descobriu o paraíso perdido do Al-Andalus, sentindo uma enorme nostalgia da "brilhante civilização árabe", ao fazer o grand tour na exótica Andaluzia. Por essa época, outros românticos descobriam também paraísos perdidos no exótico Próximo Oriente, dominado pelos turcos otomanos, quando faziam o grand tour mais em moda pelo Mediterrâneo oriental. Rapidamente a imaginação romântica de Chateaubriand engendrou um drama que sabe um pouco a um déjà vu Shakesperiano. Em Les aventures du dernier Abencérage, o cenário não foi a cidade italiana de Verona no Renascimento, e os amores impossíveis entre as famílias rivais dos Montéquios e dos Capuletos. O cenário foi a Granada do ex-Al-Andalus (a Península Ibérica muçulmana), após a reconquista cristã dos reis católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela, e a queda do último sultão muçulmano da dinastia Nasrida, Abu Abd Allah (mais conhecido por Boabdil), em 1492. No imaginário romântico de Chateaubriand, este deve ter sido um episódio doloroso que lhe partiu a alma quando deambulou por Granada. Pela pena do escritor-poeta surgiu então uma princesa cristã (Blanca) apaixonada por um nobre árabe, designado no conto por mouro, Aben-Hamet. Este era o último representante da família dos Abencerrages - nome que vem de "Beni Seraj", uma tribo árabe que terá habitado Córdoba e depois Granada, desde os tempos da conquista do século VII, e rivalizava com a tribo dos Zegris. Os Abencerrages teriam sido dizimada por Boabdil, numa lendária versão mourisca que lembra a vendetta entre Montéquios e Capuletos. (Os confrontos étnico-religioso entre muçulmanos não são propriamente uma novidade da Palestina, do Iraque ou do Afeganistão de hoje.) Como é habitual, para dar intensidade dramática a este tipo de narrativas românticas de amores impossíveis, na família de Blanca corria nas veias o sangue cristão e católico de El Cid e na família de Aben-Hamet o sangue árabe e muçulmano, supõe-se sunita, dos nobres Abencerrages.
A estória, situada algures durante o século XVI, durante o reinado do Imperador Carlos V de Espanha, da casa real dos Habsburgos, inicia-se com Aben-Hamet em Tunis, perto de Cartago, para dar mais grandiosidade histórica ao romance. Este, apesar da sua juventude, já tinha a alma despedaçada por estórias das glórias da família em Granada e sobre a beleza do local. Assim, meteu-se ao mar resolvendo ver como era a terra dos seus antepassados na outra margem do Mediterrâneo. Mal chega a Granada cruzou-se na rua com Blanca, e é amor à primeira vista entre os dois. Amor impossível, obviamente, dado ela ser cristã e ele muçulmano, ela ser descendente do Cid e ele dos Abencerrages (na altura ainda não existia a Aliança de Civilizações de Zapatero-Erdoğan, pelo que estes dramas eram bem reais). O enredo decorre com os habituais episódios de passeios pelos amantes em palácios encantados (o inevitável Alhambra), excursões por jardins, fontes e recantos com ciprestes e buganvílias, visitas a cemitérios com inscrições em alfabetos exóticos e meio apagadas nas tumbas. No final, o leitor mais sujeito a comoções é poupado a um remake da tragédia de Romeu e Julieta: aqui os amantes apenas se separam, num doloroso e comovido adeus, seguindo cada um o seu caminho nas duas margens do Mediterrâneo.
A Literatura, incluindo a romântica, faz inquestionavelmente parte de um rico património cultural da humanidade e integra, de pleno direito, uma verdadeira cultura humanística. Sem esta, o ser humano seria bem mais pobre de imaginação e de pensamento criativo. O único problema é quando uma imaginação literária e romântica - emotiva e comovente, ou patética e lamechas, consoante os gostos estéticos e literários -, se começa a transformar, subtilmente, numa fonte de “factos históricos” e a influenciar a opinião pública como tal. É essa a sensação que fica quando lemos comentários políticos que apelam ao conhecimento histórico, como o de Miguel Sousa Tavares sobre “A Morte do Islão”, e percebemos o imaginário romântico que lhe está subjacente que transforma, sob a forma de uma escrita elegante, estórias (contos, narrativas) em História.
JPTF 2008/01/30
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