janeiro 24, 2008

A desconstrução da "objectividade" e do "rigor" da imprensa portuguesa: o caso do jornal "Público" de 24/1/2008



O jornal "Público" é um diário de referência da sociedade portuguesa. Tipicamente está associado a uma classe média, ou média alta, e a um leitor com um certo nível cultural, frequentemente com formação académica. No seu estatuto editorial apresenta-se como um "jornal diário de grande informação, orientado por critérios de rigor e criatividade editorial, sem qualquer dependência de ordem ideológica, política e económica". Curiosamente, ou talvez não, a tradicional expressão "informação objectiva" (já) não consta do estatuto editorial, mas, apenas, "rigor" e "criatividade". A verdade é que tipicamente o leitor médio, quando procura um jornal conceituado, procura também ser informado com isenção, objectividade e rigor e espera "cultivar-se". Face a estas expectativas usuais, um pequeno teste interessante é o de tentar saber se, por exemplo, a edição de hoje, 24/01/2008, do "Público", corresponde a este "imaginário" do leitor médio. Atente-se, por exemplo, em três assuntos de actualidade: i) o corte do abastecimento de energia eléctrica de Israel a Gaza e o derrube pelos palestinianos do muro de fronteira com o Egipto; a expulsão dos marroquinos que há algumas semanas atrás chegaram ilegalmente à costa do Algarve; iii) e os islamistas paquistaneses que preparavam um atentado suicida em Barcelona, tendo ontem sido confirmada pelo juiz de instrução espanhol a gravidade das acusações que levaram à sua detenção pelas forças policiais.

Como são representados estes assuntos no "Público"? O primeiro tem amplo destaque editorial e gráfico na capa com o título "Gaza. Palestinianos derrubaram fronteira com o Egipto" (fotografia em grande destaque, mais de metade da parte de baixo do jornal e chamada de atenção para a notícia na página 14, onde preenche a totalidade da página e parte significativa da página 15). O segundo, ocupa toda a metade de cima da página 6 e a notícia é, em grande parte, centrada no protesto de cerca de 30 activistas (entre outras associações não identificadas pelo autor da notícia, estariam membros da "Olho Vivo" e do Bloco de Esquerda), com uma fotografia em grande plano de um cartaz dizendo "ninguém é ilegal". Quanto ao terceiro, é objecto de uma notícia minúscula, de menos de duas dezenas de linhas, com o título "paquistaneses preparavam atentado em Barcelona", ocupando 1/4 do espaço dado à notícia do "cordão umbilical dos palestinianos com mundo" (que se encontra ao lado, na página 15). Pelo destaque do título, fotografia e dimensão do artigo, a hierarquia de importância dos assuntos implicitamente sugerida aos leitores é a seguinte: 1) palestinianos encurralados em Gaza; 2) emigrantes ilegais marroquinos repatriados; 3) paquistaneses que preparavam atentado em Barcelona. Quais as razões que levaram a esta hierarquia? A importância objectiva das notícias? (Veja-se como o jornal espanhol La Vanguardia retrata este "insignificante" acontecimento e a intenção dos islamistas causarem "dois dias de terror em cadeia".) O interesse dos leitores? O impacto dos assuntos em Portugal? A imitação da imprensa de "referência" internacional? Mas por que é que a eminência de um atentado terrorista em Espanha, uma realidade muito mais próxima e ligada a Portugal, foi relegada a um plano manifestamente secundário, face ao derrube de um muro na longínqua faixa de Gaza (o jornal britânico Times noticiava ontem que o movimento islamista radical Hamas já há meses preparava uma operação de derrube do muro... Afinal, a quem devo creditar o "rigor" informativo, ao Times ou ao "Público")? E por que razão uma manifestação, que até nem reuniu mais do que uns meros trinta activistas, tem também um destaque maior e imagem fotográfica? Mas, para além dos eventuais motivos de "criatividade editorial" subjacentes (o que faz lembrar um pouco o argumento da "liberdade poética"...), quais as razões de "rigor" na informação que a explicam? Será que estes assuntos são mesmo neutros ideologicamente? Será que nada têm a ver com causas, agendas (políticas) e visões do mundo simpáticas para quem os edita? Para ajudar a responder a estas e outras questões incómodas para os mitos jornalísticos, recomendo a leitura de um dos livros mais brilhantes feito sobre a propaganda, da autoria de Jacques Ellul, originalmente publicado em língua francesa nos anos 60, em pleno conflito ideológico da Guerra Fria. Termino com uma das reflexões que se podem encontrar neste, e que dá muito que pensar: um dos paradoxos da moderna e (sofisticada) propaganda é que são os indivíduos mais instruídos e cultos os mais susceptíveis de serem por esta afectados ....
JPTF 2008/01/24

1 comentário:

  1. De facto, a saua abordagem está, como o título do seu blogue, acutilante. Efectivamente hoje os nossos media já puseram de lado qualquer desejo ou tentativa sequer de objectividades. Hoje qualquer notíciário televisivo, e mesmo uma boa parte da nossa imprensa e até rádio, não passa de mera partiçha de opiniões dos jornalistas. Hoje, lamentavelmente, não se tenta noticiar, mas sim passar opiniões ideologicamente comprometidas. Por isso não admira a hierarquia noticiosa que refere neste Público. Está o pós-modernismo a invadir claramente os media, com a sua recusa de objectividade e a sua impossibilidade ideológica da obtenção da verdade. O campo fica assim aberto ao domínio da ideologia sobre o da verdade. Sem esquecer a doentia crítica sistemática à civilização ocidental e a incofessável simpatia pelos totalitarismos de todos os matizes. A raiz marxista do pós-modernismo não consegue disfarçar-se.

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