janeiro 27, 2008

O Al-Andalus romântico de Miguel Sousa Tavares



Miguel Sousa Tavares (MST) intitula a sua crónica semanal de 26/01/2008 para o "Expresso" de "A Morte do Islão". O título é em si mesmo paradoxal, pois é notório que o Islão do século XXI, seja ele religioso ou político, está em plena expansão demográfica e, sobretudo, em grande efervescência política, ou seja, por outras palavras, está sociologicamente bem vivo (se nos agrada ou não o caminho que tem vindo a seguir isso é outra coisa). A propósito dos atentados que os islamistas-jihadistas paquistaneses se preparavam para efectuar em Barcelona, MST refere que o actual Islão está refém de “uma casta teocrática de barbudos que odeiam a vida e tudo o que representa o progresso que os seus antepassados celebraram no Al-Andalus.” Face ao desaparecimento dessa “brilhante civilização árabe da Península”, interroga-se este, “para onde foram os geógrafos, os cartógrafos, os físicos, os matemáticos, os arquitectos que fizeram o apogeu do Al-Andalus?” Quer dizer, na crónica de MST, a “morte do Islão” actual – e a mensagem que este pretende transmitir aos leitores –, adquire sentido sobretudo por contraponto com o (fascinante) Islão do Al-Andalus que este descreve. Aqui reside a parte mais problemática da crónica de MST. O texto está imbuído duma visão literária e romântica, a qual, de facto, tem uma longa tradição de celebração no espírito de escritores e poetas desde o século XIX, com Les aventures du dernier Abencérage de François-René (visconde de Chateaubriand), Les Orientales. Les Feuilles d'Automne de Victor Hugo e de Tales of the Alhambra de Washingtong Irving, entre vários outros. Em Portugal, este romantismo literário e estético novecentista, influenciou, por exemplo, os arquitectos do palácio da pena, em Sintra, e do salão árabe do palácio da bolsa, no Porto. Por isso, integra também o imaginário do grande público que está tendencialmente receptivo a aceitar a descrição “histórica” da crónica. Todavia, como estamos a falar de questões históricas e políticas e não a discutir movimentos estéticos e qualidades literárias (que MST inquestionavelmente tem), impõe-se chamar à atenção de que este imaginário só muito parcialmente é suportado pela factualidade histórica.

O Al-Andalus foi uma plataforma transmissora de conhecimentos para a Cristandade Ocidental, nomeadamente ao nível da herança cultural helénica. O símbolo máximo desse processo foi Averróis (Ibn Rushd), no século XII. Mas aqui existe uma primeira nuance a ter em conta. Averróis é menosprezado pelos actuais islamistas (e não só), que o consideram uma “sombra da filosofia grega” (a expressão é do principal ideólogo dos Irmãos Muçulmanos Sayyid Qutb). Quer dizer, este não é visto como um genuíno representante da tradição islâmica. Para além disso, importa notar que o vasto património cultural e científico helénico (tal como o da Pérsia e o da Índia), foi apreendido e transmitido pela civilização islâmica, mas não tanto integrado na sua identidade. Esse é um aspecto crucial. Por outro lado, nesse papel de transmissão, foram particularmente importantes as populações cristãs árabes do Médio Oriente. A tradução começou a ser feita no século VIII, na língua síria, num Império Árabe, onde a maioria da população nessa época era ainda cristã, um facto frequentemente negligenciado. Ou seja, o património cultural helénico que circulou pelo Império Árabe medieval até à Península Ibérica (Al-Andalus), teve, em boa parte, por base trabalho de tradutores árabes cristãos, pelo seu domínio das línguas. Outro exemplo, o que chamamos “numeração árabe” e que a Cristandade Ocidental absorveu por contacto com o Islão, é originalmente um criação hindu, com contributo persa. Mais uma vez o continuum árabe islâmico, que existia desde o Norte da Índia até à Península Ibérica, funcionou como plataforma transmissora de conhecimentos, com origem sobretudo nas civilizações orientais (Índia e China). Daí que, sem grande surpresa, quando os portugueses e espanhóis, com as grandes viagens marítimas feitas a partir do século XV, chegam directamente ao contacto com a África sub-sariana, as Américas, Índia e a China, o papel do Islão – que foi historicamente mais o de um assimilador e transmissor de conhecimentos do que o de um produtor original de conhecimento –, se tornou progressivamente irrelevante. A relevância só regressou no século XX, agora com a emergência da economia baseada no petróleo.

A influência do romantismo literário à la dixneuvième siècle, o qual foi, em grande parte, um movimento de reacção à modernidade tecnológica da revolução industrial, ao cosmopolitismo Iluminista e aos ideário universalista dos Direitos do Homem, está também bem patente na descrição que este faz de Córdoba: “Transformada pelos cristãos em mesquita catedral, a fantástica beleza despojada da construção original, com as suas 988 colunas de mármore suportando cúpulas de azulejos trabalhados em motivos geométricos, foi para sempre pervertida por essa ostentação oca das catedrais [...]” A seguir, MST interroga-se: “pela enésima vez penso nesse insondável mistério da história: porque é que uma derrota militar, e mesmo a retirada para o lado de lá do estreito, foi capaz de significar a derrota de uma civilização tão brilhante quanto a civilização árabe da Península?” Este “insondável mistério da história” que o aflige, não é muito difícil de desvendar com recurso à história europeia e das civilizações do Mediterrâneo. Em termos globais, a civilização árabe estava em acentuado declínio muito antes da derrota de 1492. Se há um marco crucial da decadência árabe, este não é certamente 1492 (Granada) ou sequer 1236 (Córdoba), no Al-Andalus – apesar da sua óbvia importância –, mas 1258 na Mesopotâmia. E o golpe mais fatal não foi dado nem por cruzados, nem pela reconquista cristã de portugueses e espanhóis, mas pelos exércitos Mongóis liderados por Hulagu Khan, que conquistaram e saquearam Bagadade e destruíram o Califado Árabe dos Abássidas (Osama Bin Laden sabe isso). Aliás, foi nesse contexto histórico, por reacção à conquista mongol e à ameaça de extermínio do império árabe (e não propriamente devido às cruzadas ou à reconquista cristã da Península), que Ibn Taymiyya, o teólogo-jurista muçulmano medieval mais apreciado pelos islamistas-jihadistas, desenvolveu uma teorização da jihad que é fonte de inspiração para a actual ideologia islamista.

MST interroga-se também "Onde está a harmonia, o equilíbrio, a homenagem à vida que o Islão espalhou por toda a Andaluzia?" Por esta interrogação deduz-se que na sua estória do Al-Andalus a destruição e saque cidade de Santiago de Compostela (907) pelos exércitos de Almanzor (Abu Emir Muhamad), os massacres e pilhagens dos bens de cerca de 6.000 judeus de Granada (1066), o período dos Almorávidas "al-murabitin" (séculos XI e XII) e o dos Almóadas que lhe sucederam, "os que crêem em Alá" (séculos XII e XIII), marcados por um rigorismo religioso próximo do fanatismo e os raides que levavam à captura e comércio de escravos não terão existido... Quanto à transformação da mesquita em catedral e à extinção de uma civilização brilhante no Al-Andalus, este não foi mais do que um processo histórico normal no contexto da época em que decorreu. (Já agora, MST não o diz, mas a mesquita de Córdoba foi construída no lugar de uma antiga igreja visigoda da cidade, a basílica de São Vicente, demolida pelos conquistadores árabes-berberes). Recorda-se que um processo idêntico ocorreu praticamente no mesmo tempo histórico, no outro extremo do Mediterrâneo. Este levou a que a expansão imperial dos turcos otomanos aniquilasse a igualmente brilhante civilização cristã bizantina, que tinha as suas raízes na Antiguidade Clássica heleno-romana. E a que, em nome do Islão, a mais imponente basílica da Cristandade Ortodoxa – Santa Sofia de Constantinopla –, fosse transformada numa mesquita, no ano de 1453, por Mehmet Fathi (o conquistador). Mesmo sem terem escritores de vulto como Chateaubriand e Irving a alimentarem a imaginação do público, os Cristãos Ortodoxos lembram-se deste acontecimento que, na sua óptica, foi extraordinariamente trágico. Como se lembram do estatuto de dhimmis que tinham sob a Xária (Sharia) islâmica e do pagamento da jizya para poderem praticar a sua religião, em submissão ao Islão e ao seu "multiculturalismo" teócratico, até a uma fase avançada do século XIX. Felizmente para nós portugueses, os cristãos ibéricos não tiveram o mesmo destino histórico. Numa época onde se dominava ou se era dominado, lutaram para serem livres, com mais ou menos brutalidade, rudeza ou violência. Uma última nota: ao contrário do que MST sugere, o que os islamistas-jihadistas da Al-Qaeda pretendem não são desculpas pela perda do Al-Andalus e a queda de Granada em 1492, mas sim o próprio território do Al-Andalus. Basta ler as mensagens de Osama Bin Laden ao mundo.
JPTF 2008/01/27

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