março 30, 2008

O que é o multiculturalismo? (como ideologia e política pública) - Parte II


1. Deve a um sikh ser permitido conduzir sem capacete, por ser uma prática cultural do seu grupo o uso habitual do turbante? Deve uma muçulmana poder fazer a chamada «circuncisão feminina», por ser esta a sua tradição religiosa e familiar? Deve um hindu estar isento dos feriados religiosos (cristãos) dos países ocidentais, podendo abrir, por exemplo, as suas lojas comerciais em dias em que está proibida a sua abertura por motivo de celebrações religiosas do Cristianismo? Devem os curricula escolares ser alterados em disciplinas como a História e/ou a Literatura, para dar «voz aos que não têm voz» e aumentar a auto-estima dos grupos minoritários em detrimento do estudo dos clássicos Dead White Males como William Shakespeare, que reflectem a cultura «eurocêntrica» (anglo-saxónica) da maioria branca, protestante e masculina (WASP) ? Vistas a partir de Portugal estas questões são não só novas como podem até parecer um pouco bizarras e fazer-nos sorrir. Todavia, estas são controvérsias sérias e bem conhecidas não só do debate teórico , como do cidadão comum nos países onde o multiculturalismo não é apenas uma palavra fashion para políticos ou comentadores. É que aí os efeitos das suas políticas são uma realidade bem palpável no dia a dia. Quais são esses efeitos? Vejamos o caso do Canadá.

2. Muitos dos principais «cultores» do multiculturalismo são de facto canadianos. Desde o seu «pai político» nos anos 60 do século XX, o senador de origem ucraniana, Paul Yuzyk, até aquele que o Wall Street Journal já designou como sendo o guru global do multiculturalismo, Will Kymlicka. Todavia, este país é um caso particularmente curioso pois o entusiasmo das elites políticas e académicas pelo multiculturalismo esfria-se bastante quando se chega à população, que supostamente seria a grande beneficiária dessas políticas. É o que mostra um livro cáustico sobre culto do multiculturalismo no Canadá, da autoria de Neil Bissoondath, um canadiano nascido em Trinidad. Entre outros dados que contrariam o discurso oficial de sucesso, este refere que, num inquérito feito em meados dos anos 90, a maioria dos canadianos acreditava que o «mosaico multicultural» não estava a funcionar; por sua vez, mais de 70% afirmavam que as políticas multiculturais deveriam dar lugar a uma «absorção cultural» do género do melting pot dos EUA. Para este escritor cujo livro se tornou rapidamente num best-seller, tendo ganho o Montador Award de 1994, o multiculturalismo é uma espécie de novo apartheid que cria «canadianos com hífen» (afro-canadianos, muçulmano-canadianos, sino-canadianos, russo-canadianos hispano-canadianos, etc.) e não apenas «canadianos» tendo um efeito oposto ao proclamado oficialmente: afasta as minorais da cultura dominante levando-as ao ghetto cultural, o que lhes diminui as possibilidades de integração e de sucesso económico e social.

3. Ainda no Canadá, em 2004/2005 diversos movimentos conservadores e islamistas tentaram a criação de tribunais que aplicariam a Xária (Sharia) – a lei islâmica –, para as questões de família entre muçulmanos na área de Toronto (ver o filme Sharia in Canada, dirigido por Dominique Cardona e produzido pelo National Film Board of Canada). Essa tentativa evidenciou a fragilidade das políticas multiculturais canadianas e a ‘janela de oportunidade‘ que estas representam para os movimentos que têm por objectivo a (re)islamização da sociedade. Foi à enérgica acção de uma advogada canadiana, nascida no Irão, Homa Harjomand, activista dos direitos humanos e das mulheres que, em grande parte, se deve o fracasso dos ‘tribunais xária‘. Vale a pena destacar aqui um excerto da sua fortíssima reacção de indignação contra as políticas multiculturais e o relativismo cultural que as suporta, tão ao gosto das elites canadianas e ocidentais: «Em nome do ‘respeito pelo multiculturalismo‘ e das vergonhosas ideias do relativismo cultural que deixam as pessoas sujeitas ao arbítrio da sua própria cultura, os Estados deixaram as portas amplamente abertas para as religiões e aderentes de antigas tradições promoverem escolas religiosas e centros; para legalizar casamentos arranjados e forçados; para segregar rapazes a raparigas com idades muito novas na escola, nos autocarros escolares e nos recreios; para impedir as raparigas de obterem iguais oportunidades em todos os aspectos das suas vidas; ver mas ignorar os homicídios de honra e muitas outras práticas… Todas estas práticas desumanas acontecem também no Ocidente.»

OBS: Texto baseado no artigo originalmente publicado na revista Atlântico nº 10 (2006): 37-39
JPTF 31/03/2008

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