março 04, 2008

A Queda de Marx e a Ascensão de Maomé nos Balcãs (Parte V)



A formação dos modernos Estados-Nação nos Balcãs ocorreu num processo evolutivo substancialmente diferente da Europa Ocidental. Os antigos millet otomanos – as comunidades étnico-religiosas sujeitas ao poder imperial e teocrático do sultão-califa – só ao longo do século XIX e inícios do século XX deram lugar a formas de organização política comparáveis às da Europa Ocidental. Neste processo de libertação do poder imperial e colonial otomano, o antigo millet otomano dos cristãos ortodoxos (o rum millet), deu lugar a novas identidades seculares nacionais: gregos, sérvios, búlgaros, etc. Por sua vez, os muçulmanos otomanos (os súbditos de primeira do Estado islâmico otomano), surgiram também com identidade seculares nacionais como albaneses, bósnios, etc. Este processo histórico que ficou congelado durante a Guerra Fria, voltou a reabrir-se na última década do século XX, tendo os conflitos dramáticos que levaram à sua desagregação ocupado sistematicamente a agenda internacional. Nos últimos anos, as questões ligadas à divisão da ex-Jugoslávia perderam relevância nos media europeus e ocidentais gerando, na opinão pública, a sensação enganadora de estarem resolvidas. Todavia, a realidade no terreno é substancialmente diferente. O (teoricamente) unitário Estado da Bósnia-Herzegovina é uma construção extremamente frágil dos Acordos de Dayton (1995), integradas, na prática, por duas entidades autónomas que, de facto, vivem separadas entre si – a artificial Federação da (croata-muçulmana) da Bósnia e Herzegovina, liderada pelos muçulmanos-bósnios e a República Srpska dos sérvios-bósnios. A Macedónia, um Estado de dimensão geográfica e população diminuta tem também estrutuas estaduais frágeis. O seu funcionamneto assenta num delicado equilíbrio entre a sua maioria macedónia eslava e cristã ortodoxa, e uma minoria substancial, ainda que hetorogénea, de muçulmanos, composta sobretudo por albaneses étnicos. Quanto ao Kosovo, que nos últimos meses saíu do esquecimento e voltou a reentrar na agenda política, é um micro território composto em mais de 90% por populações albanesas (esmagadoramente muçulmanas) ambicionado converter-se em Estado soberano. Nesta última questão, a estratégia europeia e ocidental parece ser a de apostar na sua independência, perdendo a Sérvia (mais) uma parcela do seu território e população, em troca de uma aceitação da sua candidatura à União Europeia. Para além da desconformidade face ao normativo do Direito Internacional Público e aos princípios da Carta das Nações Unidas, que afirmam a soberania e a integridade territorial dos estados, esta estratégia europeia levanta, de um ponto de vista político, diversas dúvidas e interrogações. Serão micro estados como o Kosovo entidades politicamente viáveis numa região geopolítica instável como os Balcãs? A resposta mais óbvia é que tais entidades estaduais só serão viáveis se se converterem em protectorados permanente de potências estrangeiras, sejam elas ocidentais (União Europeia ou EUA) ou muçulmanas (é o caso da Turquia que, nos últimos anos, tenta desenvolver uma política externa neo-otomana, mas também de outros Estados que aspiram à liderança do mundo árabe e islâmico como a Arábia Saudita ou o Irão). Embora o protectorado europeu/ocidental possa ser a solução menos má das duas, não deixará de levantar problemas complexos e de ter custos muito elevados. À rivalidade e desconfiança entre as populações muçulmanas e as populações ortodoxas, junta-se uma outra rivalidade e desconfiança face ao próprio Ocidente, cuja raízes mais profundas se encontram na fractura milenar entre o Cristianismo Latino e o Cristianismo Ortodoxo. Por absurdo que posso parecer, esta fractura condiciona a percepção dos acontecimentos na região. Por exemplo, durante as guerras da Jugoslávia as populações ortodoxas dos Balcãs interpretaram frequentemente a actuação europeia/ocidental como uma aliança oportunista contra a Ortodoxia, punindo a Sérvia pela sua resistência às tentativas ocidentais (através do reconhecimento unilateral da independência das católicas Eslovénia e Croácia, liderado pela Alemanha e Áustria) e do Papa (através do suporte às acções dos cristãos uniatas, que são cristãos de rito ortodoxo que reconhecem a sua autoridade), com o objectivo de reunificar a Europa no plano religioso. Quanto à segunda possibilidade, um Kosovo sob influência de potências muçulmanas – algo que no médio ou longo prazo poderá ser o resultado da actual política europeia de apoiar a independência de um território, o qual está destinado a ser o segundo Estado muçulmano na Europa (os países da Organização da Conferencia Islâmica certamente estão gratos...) –, arrisca-se a reavivar na região as memórias conflituais do «jugo otomano». Mas, pior do que isso, pode re-abrir portas ao jihadismo, agora num contexto internacional mais perigoso que nos anos 90. Vale a pena recordar que nas guerras da Bósnia (1992-1995) e do Kosovo (1999) foram feitas várias tentativas de internacionalização do conflito, por sobretudo pelo líder bósnio muçulmano, Alia Izetbegovic, que via no caso do Paquistão um modelo a seguir para a Bósnia...), apelando à solidariedade da umma. A estes apelos responderam entusiasticamente os movimentos islamistas que, nos casos mais radicais, proclamaram uma jihad contra os sérvios (cerca de um milhar de ex-combatentes da jihad do Afeganistão afluíram à Bósnia). Para além disso, Estados como o Irão projectaram a sua influência através do fornecimento de armas e financiamento da aquisição de equipamento militar e a Arábia Saudita financiou (e continua a financiar) a construção de mesquitas e madrasas de rito whhabita, que difundem um Islão bastante retrógrado e estranho às populações locais. A ironia da história dos Balcãs pós-Guerra Fria é que nos tempos de Marx as coisas eram infinitamente mais simples, ou pareciam sê-lo, quando vistas do Ocidente. Que o diga a União Europeia que parece não ter aprendido as lições do passado.
JPTF 2008/03/04

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