março 30, 2008
O que é o multiculturalismo? (como ideologia e política pública) - Parte I
1. A palavra «multiculturalismo» é ambígua e tem pelo menos dois sentidos diferentes: i) um sentido descritivo, onde se refere a um facto da vida humana e social, exprimindo a diversidade cultural étnica, religiosa que se pode ver no tecido social, ou seja, um certo cosmopolitismo que actualmente é fácil de observar em qualquer grande cidade da Europa e da América do Norte; ii) um sentido prescritivo, onde designa as políticas de reconhecimento de identidade e de «cidadania diferenciada» que os poderes públicos devem pôr em prática, em nome dos grupos minoritários. Importa sublinhar que enquanto a maior parte da opinião pública, pelo menos em Portugal, interpreta o discurso do multiculturalismo no sentido descritivo do conceito, o que está em causa neste debate é essencialmente o sentido prescritivo do mesmo. Isto naturalmente leva-nos à questão das já referidas políticas de reconhecimento de identidade e/ou de «cidadania diferenciada», que os defensores do multiculturalismo sustentam como sendo a «boa» orientação política e fundamentam em princípios democráticos e em valores morais e de justiça social, argumentando com «casos de sucesso» como o do Canadá. Mas, visto que se trata de políticas públicas, que ideias e/ou ideologias prescrevem essas políticas? Para respondermos a este questão, vamos efectuar uma breve referência ao debate teórico sobre o multiculturalismo no universo cultural anglo-saxónico, e às «guerras de cultura» que este alimenta.
2. Se é claro que o multiculturalismo, como política pública, é um produto cultural que está associado, em graus variáveis, aos chamados países anglo-saxónicos (Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Reino Unido e EUA) – embora tenha também raízes noutros Estados como a Holanda – o que já é menos claro é saber como se chegou à ideia da necessidade de políticas públicas multiculturais, bem como saber quais são as concepções ideológicas que sustentam essas políticas. Na imensa literatura teórica que existe na América do Norte sobre este assunto, um dos poucos pontos consensuais é que o multiculturalismo – pelo menos na sua versão mais extrema –, é um produto daquilo que podemos designar como «marxismo cultural» por falta de uma designação mais rigorosa. De facto, na sua origem encontram-se os Estudos Culturais britânicos da «Escola de Birmingham», desenvolvidos a partir dos anos 50 do século XX, os quais têm duas grandes fontes de inspiração. Uma primeira está ligada aos trabalhos do revolucionário e fundador do Partido Comunista italiano dos anos 20 e 30, Antonio Gramsci. Nos seus «cadernos da prisão», Gramsci desenvolveu a ideia que as «inevitáveis» revoluções comunistas anunciadas por Karl Marx e Friedrich Engels não ocorreram devido à «hegemonia cultural» da burguesia, a qual levou a que as classes trabalhadoras e os oprimidos se identificassem com o seus valores impedindo a revolução. Então, impunha-se prosseguir uma nova estratégia: minar a hegemonia cultural burguesa, deslocando o combate (que já se anunciava perdido) do terreno da economia para o mais prometedor terreno da cultura. Não é por acaso que os neo-gramscianos procuram criar «trincheiras de resistência» nas disciplinas culturais (Estudos Culturais, Literatura, Antropologia, Sociologia, Comunicação Social, Ciências da Educação, etc.).
3. Mas uma outra fonte de inspiração alimenta também o multiculturalismo. Esta encontra-se nos trabalhos dos pensadores marxistas não-ortodoxos (ou seja, não alinhados pela doutrina oficial dos partidos comunistas de influência soviética) da chamada «Escola de Frankfurt» (Walter Benjamim, Theodor Adorno, etc.) e na sua crítica de índole cultural à sociedade capitalista. Esta linha teórica foi outra proveitosa fonte de inspiração para os Estudos Culturais britânicos e para muitas das posteriores inovações da teoria social. Actualmente são os continuadores destas linhas de pensamento – que agora não se auto-designam habitualmente como marxistas –, que pretendem justificar com a sua «autoridade científica» e promover junto dos decisores políticos estaduais a necessidade e as virtudes morais do multiculturalismo. Subjacente a esta argumentação, está, sobretudo, o argumento da impossível neutralidade do estado liberal face à diversidade cultural e a consequente opressão que resulta dessa impossibilidade de neutralidade cultural, para os diferentes grupos minoritários. Nesta visão, é lugar comum afirmar-se que «todas as culturas têm igual valor» merecendo por isso igual tratamento e respeito, não havendo, então, qualquer motivo para valorizar umas em detrimento das outras. Outra ideia em que assenta este argumentário é a da impossibilidade de uma verdade objectiva, de tipo transcultural, ou seja, de uma verdade comum às diferentes culturas. Como se pode já imaginar, esta ideia leva facilmente a um relativismo cultural extremo a que os seus defensores chamam a «incomensurabilidade» das diferentes culturas.
OBS: Texto baseado no artigo originalmente publicado na revista Atlântico nº 10 (2006): 37-39
JPTF 2008/03/30
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