fevereiro 21, 2008
A UE, o Kosovo e Chipre: uma estranha política externa
Para a presidência portuguesa da UE foi certamente um grande alívio que os albaneses do Kosovo tivessem aceitado transferir a sua declaração unilateral de independência para o início de 2008. A Eslovénia, um pequeno estado também saído das guerras da ex-Jugoslávia, sem poder e meios para lidar com este complexo problema diplomático, acabou por receber uma prenda envenenada na sua estreia à frente dos destinos da UE. A seguir a esta, não será difícil à França, que lhe sucederá no segundo semestre de 2008, fazer melhor figura na condução dos assuntos europeus recuperando alguma liderança europeia, como ambiciona Nicolas Sarkozy. Quanto à data de 17 de Fevereiro, tudo indica que vai ficar como uma referência importante para os actuais “conflitos congelados” em território europeu e fora dele. Desde logo pela declaração unilateral de independência do líder dos albaneses do Kosovo, Hashim Tahçi; mas também pela primeira volta das eleições presidenciais em Chipre, que levaram ao afastamento das possibilidades de reeleição do actual presidente, Tassos Papadopoulos, um crítico do Plano Annan para a reunificação da ilha.
Interessante é ligar estes dois acontecimentos em curso e a política da UE face aos mesmos. No caso do Kosovo, a linha diplomática dominante é de que as ambições de separatismo dos albaneses da região devem ser premiadas com o reconhecimento da independência. Esta é apresentada como sendo a consequência lógica da intervenção militar da NATO, em 1999, contra a Sérvia agressora de Slobodan Milosevic, bem como do Plano Ahtisaari das Nações Unidas sobre o futuro do Kosovo. No caso de Chipre, a política é, por sua vez, a de apoiar a reunificação da ilha também nos termos de um plano das Nações Unidas (o plano Annan), e não reconhecer a também proclamada unilateralmente (e até agora só reconhecida pela Turquia), República Turca de Chipre do Norte («KKTC»), em 1983. Coincidência, ou talvez não, na génese das ambições separatistas dos cipriotas turcos está também uma “operação humanitária” efectuada em 1974, para salvar os cipriotas turcos da “agressão cipriota grega e grega”. Quanto aos seus mais de 30.000 soldados no Norte da ilha são apenas uma “força de paz” como a da UE nos Balcãs (esta é a versão oficial da Turquia sobre a invasão da ilha). Sendo estas as linhas de política externa, a UE parece ter-se regozijado não só com a declaração unilateral de independência do Kosovo de Hashim Tahçi, com o afastamento de Tassos Papadopoulos em Chipre. Nos media, apesar de algumas reservas pontuais, prevaleceu também similar visão e entusiasmo quanto ao devir destas duas questões internacionais. O único problema é que tudo indica que estamos perante exercícios de wishful thinking e que o futuro destes destas questões internacionais poderá ser até bem mais complicado do que já era. Desde logo, as contradições da política externa europeia estão no cerne da questão.
A UE que, de algum modo tem por ambição federar os povos europeus, apoia não uma federação entre sérvios e kosovares com uma ampla autonomia para estes, mas a secessão destes últimos, promovendo uma Europa que, em vez de se unificar, cada vez mais se fragmenta (o Kosovo é o sexto estado a emergir da ex-Jugoslávia). A segunda contradição, também notória, reside no facto de apoiar a unificação de cipriotas gregos e turcos, ao mesmo tempo que a apoia a separação de sérvios e kosovares. A consequência natural desta política é dar argumentos e legitimar a pretensão (ilegal face ao Direito Internacional) dos cipriotas turcos sobre o reconhecimento da «KKTC», predispondo-os para a não reunificação. Na imprensa turca discute-se abertamente esta possibilidade, em contraste com wishful thinking que prevalece na imprensa portuguesa e europeia, de que o afastamento de Tassos Papadopoulos, simplisticamente esteriotipado como culpado do statu quo, vai abrir caminho à solução para o problema. Para além destas contradições, há várias consequências estratégicas a outros níveis, todas elas bem negativas. Sob uma mal disfarçada aparência de unidade – a originalidade de uma posição comum, onde não há posição comum a não ser cada estado tomar a posição que bem entende, e proclamar que “o Kosovo é um caso único e não serve de precedente” é uma coisa sui generis... –, vê-se de novo o triste espectáculo de uma (des)União Europeia do género da ocorrida em 2003, aquando da guerra do Iraque. Agora é a UE a dividir-se entre os que pretendem reconhecer o Kosovo (a nuance aqui reside no facto de os países grandes estarem de acordo) e os que não o farão, como a Espanha, a Roménia, a Bulgária, a Grécia, Eslováquia e Chipre.
Para além da fractura na UE, a independência do Kosovo está a provocar outra paralisia nas Nações Unidas (que também lembra a guerra do Iraque), não chegando, ao que tudo indica, o Conselho de Segurança a qualquer entendimento, dada a oposição frontal da Rússia e da China à independência unilateral do Kosovo (a pouca credibilidade que as Nações Unidas ainda têm cai assim ainda mais baixo). Mas se isto, só por si, já é mau, a questão tem ainda contornos piores, pois abre uma nova linha de conflito com a Rússia, dando-lhe boas razões para uma nova “guerra-fria”, e motivando-a, cada vez mais, para uma coligação com a China e outros estados descontentes com a actual ordem mundial. Quanto à Sérvia, esta atitude europeia só pode reforçar as forças políticas nacionalistas e mais radicais e fragilizar a coligação governativa de Vojislav Kostunica, enraizando o ressentimento dos sérvios face à UE. Tudo isto é negativo em termos de ambiente internacional e os europeus são a parte mais vulnerável do mundo ocidental, embora actuem como se não fossem.
Para a administração Bush, a independência do Kosovo é apenas corolário da política da administração Clinton para os Balcãs, iniciada nos anos 90. Os Balcãs estão a milhares de quilómetros, não são o México, nem a Nicarágua, nem o país tem territórios com pretensões independentistas, como acontece com vários estados europeus. Outras prioridades estratégicas se seguirão que não a Europa e, muito menos, os Balcãs (os grandes desafios que enfrentam ao seu poder estão cada vez mais no Médio Oriente e Ásia). Por razões geopolíticas óbvias, os europeus não podem pensar assim. Um estado falhado à suas portas será um desastre em termos de segurança, criando um oásis para a criminalidade comum e o jihadismo. Só que ao envolvimento da UE no Kosovo junta-se a necessidade de se envolver (leia-se integrar), a Croácia, a Macedónia, o Montenegro, a Sérvia (se esta ainda tiver vontade de aderir…), a Albânia, e a Turquia, para além das expectativas legítimas, e reforçadas pelas atitudes da UE, de adesão da Ucrânia e da Geórgia. A grande questão é como lidar com todas estas frentes estratégicas abertas ao mesmo tempo, pois a declaração de independência do Kosovo pode, com mais propriedade, ser qualificada como uma “declaração de dependência” da UE e dos EUA, a que se poderá seguir uma dependência do mundo árabe islâmico, se estas falharem nas expectativas criadas de segurança e bem-estar. Face à crescente aversão da opinião pública europeia aos alargamentos, às debilidades de funcionamento intrínsecas da UE, à crise económica e financeira e ao tenso ambiente internacional subsequente ao 11 de Setembro, é pouco provável que haja vontade, capacidade e meios de levar estas tarefas a bom termo. O que se seguirá é difícil de prever mas não dá margens para muito optimismo pela desinteligência estratégica das políticas seguidas.
JPTF 2001/02/2008
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