fevereiro 17, 2008
"Efeito Boomerang": A ideologia e utopia multiculturalistas e as suas consequências
O artigo "Boomerang" de Pacheco Pereira, publicado na edição de sábado do "Público", contém reflexões importantes sobre o multiculturalismo e as suas consequências para as sociedades abertas, democráticas e pluralistas do Ocidente. Mais até do que o pedido de desculpas aos aborígenes feito pelo Primeiro-Ministro australiano (até certo ponto compreensível, apesar da encenação mediática), são sobretudo as recentes declarações do Arcebispo de Cantuária, no Reino Unido, a favor da Sharia islâmica, o melhor exemplo do "efeito Boomerang" a que está a dar origem a ideologia e utopia multiculturalistas.
Não há dúvidas que o pedido de desculpas é uma atitude típica ocidental, que tem na sua génese a marca do Cristianismo. Ironicamente, em sociedades cada vez menos cristãs, a muito cristã (e religiosa) atitude de expiação da culpa e do "pecado" está bem viva e pratica-se até de forma exacerbada. A ideologia multiculturalista foi buscá-la ao Cristianismo e transformou-a num acto de contrição que qualquer figura pública, que se queira apresentar como "progressista", deve efectuar na política-espectáculo actual. Agora, os actos de contrição e penitência não se fazem numa igreja ou confessionário, ou cumprindo promessas nos santuários da religião old fashion (Fátima, Lurdes, etc.), mas através de piedosas declarações encenadas para os media, como as do Primeiro-Ministro australiano ou as do Arcebispo de Cantuária. Tem razão Pacheco Pereira quando refere que esta atitude não tem paralelo noutras culturas. O caso da Turquia, país candidato à adesão à União Europeia, é já um bom exemplo dessa realidade cultural diferente: o "perdoa-me" pelo genocídio arménio de 1915, onde foram dizimadas cerca de 1 milhão de pessoas, não consta nem da agenda, nem do vocabulário dos conservadores-islamistas do AKP que actualmente governam o país, nem mesmo do programa dos partidos da oposição secularista que se lhe opõem. Aliás, como poderia constar, se os ocidentais têm o exclusivo da prática de genocídios?
Parece também cada vez mais claro que a ideologia multiculturalista se arrisca a ter um "efeito Boomerang" sobre os Direitos Humanos universais, ao vê-los como uma expressão da cultura ocidental e uma forma de "imperialismo cultural". Na realidade, o que há de mais genuinamente multicultural do que cada cultura ter a sua própria Declaração de Direitos Humanos, tal como cada grupo tem os seus próprios valores, que não são melhores nem piores do que os dos outros, mas apenas diferentes? Os países islâmicos, Turquia incluída, já viram a enorme janela de oportunidade constituída por esta ideologia ocidental. A par da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (1948) há a Declaração do Cairo sobre os Direitos Humanos no Islão (1990), derivados da Sharia islâmica, naturalmente. Por isso, o recente levantamento da proibição do uso do véu nas universidades e outras instituições públicas na Turquia, torna, sem dúvida, o país mais respeitador da Declaração dos Direitos Humanos (no Islão). Quanto aos cartoonistas dinamarqueses do Jyllands-Posten, que caricaturaram o Profeta Maomé, não respeitaram também esses Direitos Humanos, pelo que devem ser sancionados. Como o Estado dinamarquês está agarrado à "velha" Declaração universal e não os pune, um movimento de cidadãos "espontâneo" e genuinamente "multicultural", tomou a iniciativa de fazer cumprir os Direitos Humanos (no Islão). Quem somos nós para julgá-los?
Interessante é também sabermos como surgiu esta nova ideologia e utopia. Na sua raiz está a progressiva transformação da velha utopia igualitária marxista, que ruiu com o final da Guerra-Fria. O que começou nos anos 60 como uma luta progressista e justa contra a discriminação de certos grupos étnicos e sociais, transformou-se, por razões complexas, numa ideologia que pretende promover a diversidade até à exaustão em nome de uma nova utopia: a sociedade multicultural onde “todas as culturas têm igual valor” e co-existem, lado a lado, de forma paritária e harmoniosa. A luta pela igualdade e pela supressão das classes sociais deu lugar à luta pela diferença e pela promoção do grupo étnico e/ou religioso. O indivíduo deixou de ser tratado numa lógica de classe (como no marxismo), ou numa lógica de individualidade (como no liberalismo), para agora ser visto numa lógica comunitarista (multiculturalista). Como resultado, cada vez mais o grupo se interpõe entre o indivíduo e o Estado. Com este processo em marcha, que politiza deliberadamente a cultura e as relações pessoais e sociais, a democracia liberal e secular de indivíduos está progressivamente a ser corroída por dentro, nos seus valores e princípios fundadores. Em seu lugar, começa a configurar-se uma nova “democracia” étnico-religiosa, onde os direitos do grupo prevalecem sobre os direitos do individuais e se começam a impor e alterar a esfera pública.
Os efeitos (des)integradores da ideologia multiculturalista para as democracias pluralistas já foram amplamente diagnosticados e denunciados por politólogos como Giovanni Sartori e Brian Barry. Note-se que o pluralismo não é sinónimo de multiculturalismo; o pluralismo admite a diferença e é tolerante com esta mas não a promove como faz o multiculturalismo devido ao seu programa ideológico; este é um aspecto distintivo crucial. Todavia, apesar destes efeitos nefastos, a ideologia multiculturalista não é fácil de confrontar politicamente, nem pelo cidadão comum, nem até por forças políticas organizadas. Desde logo porque não se apresenta a votos – não há um “partido multiculturalista” –, o que a impede de ser derrotada, ou eventualmente sufragada, nas urnas. As actuais pressões no Canadá, Reino Unido, etc. para o reconhecimento pelo Estado da Sharia islâmica (para já, em matéria de família), mostram como a utopia multiculturalista – que os seus adeptos afirmam ser progressista, “emancipatória” e moralmente superior –, pode acabar por dar origem a um retrocesso civilizacional.
JPTF 2008/02/16
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