abril 10, 2007
Livro: “A Guerra das Ideias: Jihadismo contra a Democracia” de Walid Phares, Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2007
Nos Estados Unidos existe uma grande tradição de acolhimento de pessoas que, pelas mais diversas razões, acabam por se fixar no país e contribuir para a sua produção económica, científica, artística e intelectual. Se isso é bem conhecido pelo contributo da emigração europeia, já no caso de populações oriundas de outras partes do mundo o fenómeno é relativamente mal conhecido, sobretudo quando a sua proveniência é o Médio Oriente. Para as elites intelectuais europeias, a principal excepção a esse desconhecimento é o professor de Literatura da Universidade de Columbia, Edward Said, recentemente falecido, que se tornou um autor canónico dos Estudos Pós-Coloniais constituídos sob o modelo pós-moderno das genealogias de Nietzsche/Foucault e das desconstruções de Paul de Man e Jacques Derrida. Nesta visão ideológica, a identidade do “outro” (neste caso dos árabes e muçulmanos do Médio Oriente), é vítima do “imperialismo cultural” do Ocidente, sendo representada de forma distorcida na Literatura, nos textos dos orientalistas, no discurso político e nas imagens dos media. Com este o ideário en vogue na academia, o autor do livro em análise poderia facilmente adoptar similar abordagem, pois, tal como Edward Said, é árabe (cristão), provém do Médio Oriente (Líbano) e emigrou relativamente novo para o Ocidente (EUA), onde já vive há bastante tempo, tendo adquirido aí a notoriedade internacional que o Oriente nunca lhe permitiria. Mas as semelhanças entre os dois terminam aqui. Walid Phares é actualmente é investigador associado da Fundação para a Defesa das Democracias nos EUA, sendo também professor de Estudos do Médio Oriente e de conflitos étnico-religiosos. Ressalvadas as devidas proporções, gera provavelmente na Middle East Studies Association da América do Norte um desconforto parecido ao que o escritor britânico de ascendência indiana, e Prémio Nobel da Literatura, V. S. Naipaul – que preenchendo os requisitos de vítima das “distorções de identidade” não se revê nelas – provoca em vários teóricos dos Estudos Pós-Coloniais.
Em The War of Ideas. Jihadism Against Democracy/A Guerra das Ideias: Jihadismo contra a Democracia Walid Phares retoma algumas das ideias avançadas na anterior publicação Future Jihad: Terrorist Strategies Against the West/A Jihad Futura: Estratégias Terroristas contra o Ocidente (2006), assumiu em mãos a tarefa de alertar as democracias e o mundo ocidental face aos perigos do “jihadismo”. Este é o extremo violento da ideologia islamista corporizado em diversos grupos radicais (salafistas, khomeinistas, etc.), e que, entre outros meios, recorre também ao terror como arma política, tendo aliados “objectivos” à direita e à esquerda, sobretudo nos extremos do espectro político ocidental. A abordagem a este difícil e complexo tema que marca a actual política internacional foi estruturada em treze capítulos: 1) Os debates históricos; 2) O eixo anti-democrático; 3) Visões irreconciliáveis; 4) A guerra jihadista contra os princípios internacionais; 5) O assalto ao pluralismo; 6) Os pilares da democracia sob ataque; 7) Apartheid do género; 8) O jihadismo espera o desenlace da Guerra-Fria: a primeira guerra de ideias, 1945-1990; 9) Batalhas sobre as mentes: a segunda guerra de ideias, 1990-2001; 10) O choque dos futuros: a terceira guerra de ideias, 2001-2006; 11) A guerra ao ensino; 12) Inflamando os corações e estupidificando as mentes; 13) A guerra aos mensageiros.
Como ponto de partida da análise, o autor explica o que, na sua óptica, deve historicamente ser entendido por jihad – bem como a actual ideologia política que foi construída a partir do conceito clássico da mesma –, “desconstruindo” aquilo a que este chama, de forma irónica (e numa alusão cáustica aos trabalhos de John Esposito, Tariq Ramadan e outros), as teses da “jihad como uma espécie de yoga”. Atente-se no teor deste excerto (p.35): “Em síntese, qual foi a realidade da jihad, como conceito, através de séculos de prática e a ideologia específica que a jihad defende? [...] Historicamente é claro que foi um instrumento estadual para a mobilização de guerra, sob os califados árabe e otomano e várias dinastias muçulmanas tais como os omíadas, os abássidas, os seljúcidas, os mogóis, os mamelucos e muitos outros. As referências oficiais à jihad e o número de fatwas (éditos religiosos) autorizando-a são demasiado volumosos para a ignorar. Através dos séculos da primeiro Fatah (conquista) islâmica, da Síria, Iraque, Norte de África, da Pérsia até à Espanha, milhares de discursos e declarações de jihad, nestas vastas terras fora da Península Arábica. Comparando a jihad com a conhecida “agressão ao outro” no período medieval – as cruzadas –, feita pela Europa/Ocidente cristão, este afirma ainda (p. 35-36): A “forma estadual de jihad durou cerca de treze séculos em três continentes: Ásia, África e Europa. A última jihad sancionada por um califa ocorreu durante a I Guerra Mundial, através do sultão otomano contra os Aliados, pouco antes do colapso dos exércitos imperiais turcos. Em 1924, a jihad islâmica estadual, ou a guerra global dos poderes muçulmanos baseada na decisão do califa terminou. Em comparação, as ‘guerras cristãs‘ foram interrompidas por desenvolvimentos religiosos como resultado da Reforma, dos acordos do Vaticano e da emergência do Estado secular no Ocidente. As ‘guerras judaicas‘ terminaram fisicamente em 70 a. C. com a queda de Jerusalém. Mas dos fragmentos do sultanato a jihad foi agarrada por um movimento que construiu uma apropriada ideologia e que a pôs em prática à medida que se desenrolava o século XX”.
Na sua abordagem a esta ideologia, Walid Phares assumiu também uma certa defesa de Samuel Huntington e da sua conhecida tese sobre o “choque de civilizações”, face ao “oceano de críticos que emergiu de todos os quadrantes das Ciências Sociais, bem como de jornalistas e activistas” (p. 237), por ter sido um dos primeiros académicos a alertar as democracias ocidentais para os perigos destes desenvolvimentos no mundo islâmico. Todavia, importa notar que o trabalho de Samuel Huntington, sejam quais forem as suas intenções ou méritos, acabou também por contribuir para criar um quadro mental distorcido. O que está em causa não é um conflito civilizacional, mas, como sugere o próprio Walid Phares, uma confrontação ideológica de um tipo mais complexo e difícil de apreender que o da Guerra Fria. Por isso, tomar a parte (a ideologia islamista-jihadista) pelo todo (a cultura ou civilização onde esta tem origem) é uma distorção na apreensão da realidade. Pior do que isso, é ainda uma distorção particularmente conveniente para as estratégias dos movimentos islamistas que procuram criar e apresentar, aos olhos ocidentais, um Islão essencialista e homogéneo funcionando como um bloco, algo que não existe. Importa ainda referir que para além de ser estrategicamente errada, é uma categorização extremamente injusta para com as diversas correntes de pensamento e os movimentos de muçulmanos liberais que se opõem à ideologia islamista, muitas vezes com risco da sua própria vida.
Mas o livro não se restringe à explicitação da ideologia jihadista, nem às controvérsias em torno do trabalho de Samuel Huntington. Um dos aspectos mais interessantes (e polémicos) relaciona-se com uma questão já abordada na sua publicação anterior, onde este faz um ataque demolidor aos Estudos sobre o Médio Oriente, tal como estão actualmente constituídos na maioria das universidades dos EUA. Na sua óptica, estes não estão a funcionar de acordo com princípios de rigor académico e científico que se espera das universidades e, muito menos, a prestar qualquer serviço útil à nação norte-americana. A explicação reside no que este denuncia como sendo os “lobbies wahabistas” (por referência à ideologia religioso-política fundamentalista de Muhammad Ibn Abd al-Wahhab, um árabe “saudita” do século XVIII), patrocinados pela Arábia Saudita e outras monarquias do golfo (por exemplo, o Qatar). Estes terão conseguido desenvolver, nas últimas décadas, com o suporte dos imensos meios financeiros obtidos após o choque petrolífero de 1973, uma estratégia hábil e bem sucedida de difusão da sua ideologia na América do Norte. Esta consistiu em instituir e/ou financiar generosamente os departamentos de Estudos Árabes, do Islão e do Médio Oriente, na esmagadora maioria das universidades norte-americanas, influenciando, directa ou indirectamente, a produção intelectual e as formas de pensar este assunto, tendo já produzido três gerações de académicos, professores e investigadores, com influência nos media, nas agências governamentais e nas artes (p. 194). Se a as críticas de Walid Phares têm algum fundamento, como parecem ter, a ironia tudo isto é que a tese de Edward Said sobre o Orientalismo até se pode aplicar bem aqui: de facto, surgiu nas últimas décadas um “Oriente criado pelo Ocidente” (leia-se pelos académicos dos muitos departamentos de Estudos do Médio Oriente) e que está urgentemente a precisar de ser desconstruído. Ironias à parte, a ilação mais séria e preocupante que resulta desta leitura é que se já tínhamos muitas razões para nos preocuparmos com o actual modelo de crescimento económico, baseado no petróleo, pelos enormes custos ambientais que está a acarretar, agora temos ainda uma preocupação adicional: é em grande parte a economia do petróleo que suporta financeiramente o islamismo-jihadista e o ataque às democracias.
JPTF 2007/04/10
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