abril 04, 2008

O drama do estado secular na Turquia


A acção interposta pelo magistrado Abdurrahman Yalçinkaya contra o partido do poder na Turquia - o AKP de Recep Tayyip Erdoğan (Primeiro-Ministro) e Abdullah Gül (Presidente da República) -, por actividades contra a Constituição e os alicerces seculares do Estado foi, no passado dia 31 de Março, aceite por unanimidade pelos juízes do Tribunal Constitucional (ver artigos do jornal Libération e da revista Economist). Desta forma, o colectivo de juízes considerou-se competente para analisar o pedido subjacente à acção, que poderá desembocar numa ilegalização do AKP. Para os padrões políticos e democráticos europeus, a situação é bastante insólita pois o AKP ganhou as eleições de Julho do ano passado com uma expressiva vitória 46, 6% dos sufrágios. Todavia, esta acção também pode ser vista como sinal da crescente angústia e impotência política do centro-esquerda, que se sente a assistir a uma hábil desconstrução do Estado secularista pelo AKP, e está a tentar evitá-la através de um "golpe de estado" judicial. Na raiz mais profunda do problema encontra-se a própria maneira como a República da Turquia se constituiu em 1923. O abandono da legitimidade islâmica que caracterizava o Estado teocrático otomano não foi a expressão de uma vontade popular esmagadora, mas o projecto de uma elite modernizadora e secularista liderada por Mustafa Kemal (Atatürk). Este foi posto em prática segundo um esquema inevitavelmente autoritário, que enfrentou várias revoltas internas nos anos 20 e 30 em nome do Islão. O actual drama do estado secular na Turquia é que, 85 anos depois da sua criação, a cultura kemalista secularista apenas se enraizou consistentemente nas principais instituições ligadas ao estado: o exército, o aparelho judicial, a administração pública e as escolas públicas. Nas massas e no que hoje se tendem a chamar as organizações da sociedade civil, a cultura secularista e modernizadora de Atatürk e dos seus seguidores entrou apenas de forma superficial. Pior do que isso, hoje está numa fase de reversão em favor de valores islâmicos. Esse é o grande trunfo dos conservadores-islamistas do AKP que, tudo indica pelos últimos resultados eleitorais, começam a dispor consistentemente de uma maioria sociológica no eleitorado turco. Isto permite-lhes falar, cada vez mais, em nome da "democracia" e da "vontade popular" para porem em prática a sua agenda. Neste hábil jogo político, a ironia é que processo de negociações de adesão à UE permite um contrapeso face aos inimigos políticos internos (ver notícia do jornal pró-AKP Zaman e a crítica à interferência da UE feita por Noyan Özkan, no Turkish Daily News) - a elite secularista e "autoritária" enraizada no exército, nas universidades públicas e nos tribunais. Assim, paradoxalmente, o processo de adesão à UE (um sonho tradicional do centro-esquerda kemalista e secularista), está a aumentar a angústia existencial dos defensores do legado de Atatürk.
JPTF 2008/04/03

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