A compreensão do mundo actual, especialmente do rumo dos acontecimentos internacionais após o 11 de Setembro de 2001, está a ser fortemente obscurecida pelos quadros mentais herdados do passado, que podem, de alguma forma, ser classificados como “eurocêntricos”. O primeiro quadro que obscurece essa compreensão está associado à ideia, difundida a partir dum ensaio publicado em 1989, na revista norte-americana The National Interest, por Francis Fukuyama, que sugere que o final da Guerra-Fria trouxe consigo o “fim da história”, em termos de evolução ideológica da humanidade. Nesta visão, o colapso do modelo soviético e a consequente descredibilização do socialismo-comunista deixou a democracia parlamentar liberal sem concorrentes importantes no terreno das ideologias (o “último homem” seria um produto universal do liberalismo democrático). Um equívoco, como é fácil de comprovar hoje (até certo ponto compreensível pelo entusiasmo com o fim da Guerra Fria). Na realidade, está actualmente em curso uma nova e dura competição ideológica em que o principal desafiador – o islamismo (radical) – é uma ideologia, que é política, que tem forte capacidade mobilizadora, que dispõe de argumentos racionais, emotivos e religiosos, e cujo núcleo é de tipo “cultural”, sendo os seus principais pensadores e ideário exteriores à matriz da cultura ocidental. Para além da ideia do “fim da história”, a não representação do islamismo como ideologia política (basta ver as páginas em branco dos manuais de Ciência Política sobre este assunto...), e como principal desafiador do actual statu quo internacional, tem ainda uma outra explicação: o obstáculo intelectual que resulta duma forma de pensar, herdada do século XIX, onde a competição ideológica é vista como tendo o cerne na economia política (tipo liberalismo versus marxismo). A questão é que se isto foi válido no passado europeu e ocidental, hoje é uma visão redutora que não explica bem o presente, nem as tendências que se parecem desenhar para o futuro próximo (isto, obviamente, sem negar a importância da economia política na compreensão do mundo).
O segundo quadro mental que obscurece a compreensão das circunstâncias do presente é a ideia difundida por Samuel Huntington, a partir dum artigo publicado numa influente revista norte-americana, a Foreign Affairs, em 1993, segundo o qual o conflito ideológico da Guerra Fria deu lugar ao “choque de civilizações”. Outro equívoco, com consequências de maior dimensão do que o “fim da história” de Fukuyama. De facto, a dinâmica internacional após o 11 de Setembro acabou por originar uma vulgata sobre o “choque de civilizações”, alimentada por alguns (que leram) e muitos (que não leram) o ensaio e o livro de Huntington, que marca o debate sobre política internacional, nos media, nos decisores políticos e no próprio discurso académico. O mais lamentável nas discussões tão emotivas quanto estéreis que decorrem em torno da existência, ou não existência, dum “choque de civilizações”, é a confusão habitualmente feita entre os conceitos de islamismo (uma ideologia política) e de Islão (uma cultura e religião). Aqui, o problema resulta, mais uma vez, do precário conhecimento que existe sobre os pensadores do islamismo radical (Sayyid Mawdudi, Sayyid Qutb, Hassan al-Banna, Ali Shariati, etc.), as suas principais ideias, os seus objectivos políticos específicos, os movimentos que perfilham essa ideologia, etc., que leva, erroneamente, a tomar a parte (a ideologia islamista) pelo todo (o Islão como cultura e religião). Paradoxalmente, este quadro mental distorcido influencia o modo de pensar, tanto dos partidários como dos críticos da tese de Huntington (estes últimos, com similar visão essencialista enraizada, desenvolveram a alternativa da “aliança de civilizações” – é o caso dos Primeiro-Ministros de Espanha e da Turquia, José Luís Zapatero e Recep Tayyip Erdogan), sendo particularmente conveniente para as estratégias dos movimentos islamistas. Isto porque estes procuram apresentar-se como o “verdadeiro” Islão, tentando abafar as correntes de pensamento e os movimentos políticos que se lhe opõem, dentro do próprio mundo islâmico. Assim, quando a Europa e o Ocidente olham monoliticamente para o Islão, denegrindo-o ou elogiando-o como um todo homogéneo, onde não há diversidade nem pluralidade, estão a entrar no jogo dos islamistas, com vantagem, naturalmente para estes. O corolário de todos estes equívocos – e da impreparação intelectual que lhes está subjacente – é a resposta norte-americana e europeia ao 11 de Setembro, configurada, de forma redutora, como “guerra ao terrorismo”. Historicamente, desde a Revolução Francesa e do período do “terror”, onde a expressão surgiu pela primeira vez, este sempre foi um meio, entre vários outros (e não um fim), para atingir objectivos políticos. Neste aspecto, a Al-Qaeda e outros grupos islamistas radicais não divergem deste padrão histórico. Por isso, o desafio é mais complexo e vem duma ideologia – onde o “terror” e as acções violentas (o chamado “jihadismo”) são apenas um meio extremo, adoptado pelos seus adeptos mais radicais –, e que, independentemente do que se possa pensar dela, tem conseguido mobilizar as massas e tem ambições universalistas similares às do liberalismo, do marxismo, ou do fascismo. O que está essencialmente em jogo é um confronto intelectual e ideológico, crucial para as democracias liberais, tal como são entendidas na Europa e no Ocidente. A vulgata do “choque de civilizações” e o seu mais recente antídoto, ainda que bem intencionado – a “aliança de civilizações” –, obscurecem a compreensão do mundo de hoje.
JPTF 2007/01/09
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