fevereiro 09, 2007
Livro “The Seduction of Unreason”, de Richard Wolin, Imprensa da Universidade de Princeton, 2006
Um encontro com uma das mais surpreendentes reviravoltas da vida intelectual europeia do século XX, é o que nos propõe Richard Wolin, um historiador das ideias da City University de Nova Iorque, no livro “A Sedução do Absurdo. O Romance Intelectual com o Fascismo de Nietzsche ao Pós-modernismo”, agora editado em paperback (a edição original é de 2004). Os trabalhos de Richard Wolin, oriundo do movimento da New Left dos anos 60, e que se define como um pensador liberal no sentido norte-americano da palavra (ou seja, não conservador), já deixaram um rasto de polémica e muitos intelectuais pós-estruturalistas /pós-modernistas da Europa e América do Norte, à beira de um ataque de nervos (sobretudo o já falecido Jacques Derrida). Quando falamos em pós-estruturalismo ou pós-modernismo, estamos a referir-nos a uma corrente intelectual ampla e heterogénea que se caracteriza, essencialmente, pela oposição aos ideais racionalistas, humanistas e universalistas do Iluminismo, pela crítica ao conhecimento científico considerado uma forma de poder e de opressão ao serviço da democracia liberal-capitalista, pela desvalorização da racionalidade, pela sustentação do relativismo cultural da verdade e pela defesa das políticas de identidade.
Na “Sedução do Absurdo”, Richard Wolin dividiu em duas partes a sua abordagem. A primeira é dedicada ao que este designa como a “ideologia alemã”, ou seja, o contra-iluminismo, empenhado na rejeição da crença na razão e na verdade universal, da possibilidade de progressão social e política pelos valores do liberalismo e da democracia e na negação do humanismo universalista iluminista do século XVIII. Aqui, Wolin analisa sobretudo as ideias e o percurso pessoal e político de pensadores como Nietzsche, Jung, ou Gadamer, efectuando também o que este chama uma “excursão política” sobre o pensamento da nova direita alemã. Insere ainda um capítulo dedicado especificamente à recepção pós-moderna de Nietzsche na América do Norte, após a “escala técnica” feita em França, onde adquiriu roupagens pós-estruturalistas, com o sugestivo título de “Zaratustra vai para Hollywood” (uma alusão irónica ao livro “Assim falava Zaratrustra”, de Nietzsche). Neste capítulo, põe em causa o uso selectivo e/ou as omissões deliberadas dos aspectos mais incómodos e comprometedores do pensamento de Nietzsche, usado e abusado pelos nazis como uma espécie de “filósofo da corte”, mas que nos textos dos pós-estruturalistas franceses e seus seguidores (os casos de Michel Foucault e Jaques Derrida são talvez o melhores exemplos), surge com uma imagem “desnazificada”, quase angélica, como um espírito sublime com meras preocupações estéticas e de crítica cultural e social, alheado dos meandros terrenos da política de poder (machtpolitik).
Na segunda parte, Wolin aborda o que este chama as “lições francesas” e a viagem da “ideologia alemã” para a outra margem do Reno, ou seja, a deslocação do contra-iluminismo com “a crítica da razão, da democracia e humanismo, que teve origem na direita alemã dos anos 20”, para França, pela via, bastante insólita, de parte da esquerda intelectual e política francesa, que se apropriou e internalizou essas ideias. A análise de Richard Wolin incide sobre os pensadores que, segundo este, tiveram um papel central nessa “transmutação” de ideias reaccionárias e próximas de ideologias totalitárias de direita – fascismo e nazismo – em ideias que passaram a ser apresentadas como “progressistas”, “democráticas” e de esquerda. Esses pensadores foram Georges Bataille, Maurice Blanchot e Paul de Man, passando pela influência filosófica de Martin Heidegger, para culminar no desconstrucionismo de Jacques Derrida e nas implicações do seu relativismo extremo sobre a própria ideia de verdade e de justiça. Há também uma segunda “excursão política”, agora sobre o pensamento da nova direita francesa da Frente Nacional de Le Pen e seus seguidores. O que se torna perturbante ao longo da leitura do livro é a evidenciação das similitudes filosófico-políticas entre o actual pós-modernismo e as suas pretensões de crítica e superação da modernidade, e muitas das ideias dos intelectuais “protofascistas” dos anos 20 e 30, que aderiram a ideologias totalitárias, e que pretendiam erradicar a democracia parlamentar e o liberalismo, revelando a existência de um vasto “património negro” habitualmente omitido ou “embelezado” pelos seus adeptos.
Indubitavelmente desconcertante é ver como a ideia de uma esquerda tradicionalmente universalista, herdeira do Iluminismo e da Revolução Francesa, baseando os seus ideais e reivindicações sociais e políticas nas noções de razão, verdade, direitos humanos, justiça e democracia e que estava na linha da frente da luta contra o obscurantismo, se perdeu na nebulosa do pós-estruturalismo/pós-modernismo. Ao assimilar, entre outras influências, o “perspectivismo” de Nietzsche (bem expresso no dito “não há factos só há interpretações”) parte do pensamento de esquerda – a chamada “nova esquerda pós-marxista” – pretendeu relativizar as normas sociais e/ou jurídicas da sociedade liberal-burguesa, denunciando-as como expressão de interesses particulares ou relações de poder que arbitrariamente favorecem alguns povos, culturas ou grupos sociais em detrimento de outros. Com este fundamento filosófico e epistemológico os “progressistas pós-modernistas” consideram-se em posição de “desconstruir” as normas dos grupos dominantes, ou privilegiados socialmente, e denunciar a hipocrisia social que lhe está subjacente, proclamando, em alternativa, que todas as “culturas são boas”. Para além do impasse ético e do bloqueio da acção política a que este tipo de ideias tendencialmente leva (o que, só por si, já é negativo) é também óbvio que o mesmo procedimento corrosivo pode ser aplicado aos ideais verdadeiramente progressistas, como os direitos humanos. Se os virmos sob o prisma do pós-modernismo chegamos à conclusão que são uma expressão da cultura ocidental (o ideário liberal contido nas revoluções francesa e americana) e de uma vontade de poder do Ocidente, que pretende impor a “hegemonia cultural” denunciada por Gramsci, não havendo, por isso, razão válida para que outras culturas os adoptem. Não é isso que dizem também os ideólogos do islamismo radical, como Mawdudi e Qutb? Não é isso que faz também a Organização da Conferência Islâmica, com a sua Declaração dos Direitos Humanos no Islão, que não são os da Declaração Universal das Nações Unidas?
NOTA: Esta recensão foi publicada na Crítica: Revista de Filosofia e Ensino http://www.criticanarede.com/
JPTF 2007/02/09
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