maio 07, 2007
Comentário: A estratégia do AKP e os paradoxos da eleição presidencial na Turquia
A recente eleição presidencial na Turquia, feita na Grande Assembleia Nacional (o parlamento turco), e a anulação da primeira votação pelo Supremo Tribunal devido a falta de quórum, na sequência do recurso interposto pelo Partido Republicano do Povo (CHP) – o maior partido da oposição (secularista e social-democrata) liderado por Deniz Baykal –, levantam várias questões políticas interessantes sobre a política interna da Turquia. A primeira é que o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), de raízes islamistas, liderado por Recep Tayyip Erdogan, procurava eleger um presidente da república da sua confiança (Abdullah Gül, o actual Ministro dos Negócios Estrangeiros e ex-quadro do Banco Islâmico de Desenvolvimento, sediado em Jeddah, na Arábia Saudita), aproveitando o facto de, na eleição parlamentar de Novembro de 2002, com pouco mais de 1/3 dos votos (mais exactamente 34, 3%) ter obtido quase 2/3 dos deputados (que é o número constitucionalmente necessário para a eleição do presidente da república na primeira votação parlamentar). Importa recordar que este foi um resultado anómalo no quadro do historial das eleições parlamentares realizadas no país. Só um conjunto de circunstâncias muito peculiares que ocorreram na eleição parlamentar de Novembro de 2002 (por exemplo, o aparecimento do populista Partido da Juventude, de Cem Uzam, que obteve mais de 7% dos votos), à qual se junta o facto de a lei eleitoral turca exigir, pelo menos, 10% de votos para representação parlamentar (um dispositivo para evitar partidos étnicos curdos), permitiram esta enorme maioria parlamentar ao AKP. A segunda é que, apesar de alguma evolução positiva no sentido da aceitação das regras normais do jogo democrático numa sociedade pluralista (e da ideologia conservadora-democrática que é proclamada oficialmente), o AKP não se desligou completamente, nem das suas raízes islamistas, nem de várias reivindicações típicas dos movimentos que se movem nesse quadro ideológico-religioso. Pelo contrário, há vários indícios de que, uma vez tendo atingido o poder, o partido de Erdogan e Gül procurou implementar uma estratégia sofisticada de reislamização da Turquia (tirando ilações do fracasso do seu antecessor, o Partido da Prosperidade de Erbakan). É de alguma maneira isto que se pode verificar quando analisados os quatro anos e meio de actuação do seu governo e o esforço de implementação de várias iniciativas (algumas das quais frustradas pela oposição que lhe foi movida pelo establishment secular – entre os quais as Forças Armadas, que voltaram a fazer ouvir a sua voz nesta eleição presidencial – e, em particular, pelo papel de contrapeso do Presidente da República, Ahmet Necdet Sezer): i) tentativa de reintroduzir a criminalização do adultério, na esteira do dispositivo tradicional da Sharia islâmica; ii) tentativa de revogar a proibição do uso de véu nas universidades e organismos públicos; iii) expansão das prerrogativas dos graduados das escolas iman-hatip (religiosas), que formam os pregadores e «clérigos» muçulmanos, de modo a que estes, no futuro, possam aceder à máquina administrativa do Estado; iv) aumento do ensino religioso e difusão dos estudos corânicos junto das crianças; v) colocação de personalidades com simpatias pro-AKP em cargos importantes do Estado, incluindo o sistema judicial e o próprio exército; vi) reconfiguração da política externa em moldes ideológicos, deixando cair a anterior proximidade estratégica com Israel, em favor de novas proximidades ideológico-estratégicas islâmicas (aproximação ao Irão e Síria, abertura ao governo islamista do HAMAS na Palestina, etc.). Mas o mais paradoxal é que esta estratégia sofisticada de reislamização precisou, em parte, da cobertura da União Europeia para ser viável, ou seja, para não ser interrompida, como em 1997, pelo establishment secular e, sobretudo, pelas Forças Armadas.... Por outras palavras, os «valores europeus» têm sido usados pelo AKP para tentar afastar o controlo estatal das instituições religiosas da Turquia, incluindo mais de 100.000 mesquitas e waqf (fundações religiosas e de assistência caritativa) e criar uma contra-elite islamista. Isto porque secularismo na Turquia não significa tanto a separação entre a mesquita e o Estado, mas, sobretudo, um controlo da primeira pelo segundo. Nesta estratégia de construir um contrapeso para as estruturas seculares, a eleição de um Presidente da República conservador-islamista era, pelas razões já apontadas, uma peça fundamental. Ao contrário da União Europeia, o establishment secular turco percebeu bem o que estava em jogo e como a democracia pode ser usada para cobrir estratégias que visam corroer lentamente valores democráticos e seculares.
JPTF 2007/05/07
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