maio 01, 2008

Aristóteles no Monte Saint-Michel, de Sylvain Gouguenheim


1. O historiador e medievalista francês, Sylvain Gouguenheim, professor da Escola Normal Superior de Lyon, publicou recentemente um livro demolidor e polémico, que já lhe valeu a hostilidade de vários colegas de profissão. Nesse livro, o autor analisou em detalhe a tese, muito divulgada actualmente, de que a Europa teria um importante débito face ao Islão, na transmissão do saber da Antiguidade Clássica grega, através do Al-Andalus (a Península Ibérica muçulmana medieval), da Sicília, etc. Como este vai evidenciando ao longo do trabalho, esta é uma percepção que, embora com fundamento histórico, tende a ser bastante exagerada, algo que se pode verificar através de um exame mais minucioso da Idade Média europeia. De facto, em parte essa percepção deve-se a um relativo (des)conhecimento do período medieval europeu, visto superficialmente como uma ‘idade das trevas‘. Normalmente é subestimado o grau de persistência da herança cultural da Antiguidade Clássica, apesar de tudo apreciável, bem como o trabalho autóctone de tradução - como foi o caso do desenvolvido na abadia do Mont Saint-Michel, em relação aos textos de Aristóteles e outros filófosos da Antiguidade -, que precedeu em cerca de meio século o efectuado no Al-Andalus. (Tudo isto não é muito surpreendente, se nos lembrarmos que o grego era a língua dos Evangelhos, como recorda Sylvain Gouguenheim, o que constituía um importante estímulo para o seu conhecimento). Para além disso, baseia-se também numa tendência dos historiadores ocidentais para a subvalorização do importante contributo da civilização bizantina na transmissão do saber da Antiguidade Clássica ao Ocidente latino e germânico, durante o período da Alta Idade Média. Alimenta-se, ainda, de uma vulgar confusão que existe na Europa e Ocidente entre árabes e muçulmanos.

2. Um aspecto normalmente desconhecido, pelo menos do grande público, é que grande parte do trabalho de tradução dos manuscritos gregos foi efectuado não por muçulmanos, mas por cristãos árabes (sobretudo aramaicos ou sírios) do Médio Oriente, os quais, entre os séculos VIII e X constituíam a maioria da população do império árabe islâmico na região (e eram praticamente os únicos que tinham as competências linguísticas necessárias para essa tradução, pelo menos nos primeiros tempos). Por outro lado, e este é também um ponto crucial, o interesse pela Antiguidade Clássica e o legado da Filosofia grega, nunca foi incorporado na cultura islâmica dominante, sendo restrito a uma elite intelectual (Averróis, Avicenas, etc.), ao contrário do que aconteceu na Europa, onde acabou por ter uma difusão alargada e se misturar com o próprio Cristianismo, como é bem visível no Renascimento dos séculos XIV a XVI. Isto não significa, naturalmente, que o Islão não tenha influenciado o Ocidente cristão em vários aspectos culturais, tecnológicos e até teológicos. Por exemplo, como assinalou Jacques Ellul, no domínio teológico essa influência pode detectar-se nos sucessivos apelos papais aos milites Christi (soldados de Cristo), a partir do final do século XI, com bulas concedendo benefícios aos que integrassem as cruzadas. Esses apelos e bulas papais denotam uma influência dos textos dos teólogos-juristas muçulmanos medievais (sobretudo comentários ao Corão e aos ahadith, as acções e ditos do Profeta Maomé) sobre a jihad (entendida como uma espécie de bellum justum). Estes exortavam os muçulmanos à participação na ‘guerra santa‘ e prometiam recompensas aos que nela participassem com a sua vida e bens - um modelo de sucesso que o Cristianismo ocidental, mas não o Cristianismo ortodoxo bizantino -, procurou imitar através das cruzadas.

3. Sem estar isento de críticas ou algumas debilidades pontuais, este livro constitui uma leitura interessante e merecedora de reflexão. Note-se que o tema, apesar do seu distanciamento histórico, ainda hoje move paixões e não é neutro politicamente, sobretudo no actual clima de relações conturbadas com o mundo islâmico onde paira o espectro de um ‘conflito de civilizações‘. Todavia, o seu principal mérito é o de funcionar como um válido contraponto face a um enviesamento do passado que tende a ser gerado por um certa vulgata ‘histórica‘, imbuída, consciente ou inconscientemente, de uma ideologia multiculturalista. Esta, ao projectar no período medieval formativo da Europa os ideais e utopias do presente, acaba por recriar uma nova ‘história‘ que se vê a si mesmo como ‘progressista‘ e aberta ao ‘outro‘. A ironia é que, embora sob outras formas, esta visão necessita de ‘descobrir‘ as suas próprias mitologias (multiculturalistas) para se legitimar. A mais conhecida é a de um Al-Andalus das ‘três culturas‘, onde muçulmanos, cristãos, e judeus ‘conviviam‘ lado o lado. O problema que este tipo de imagens ‘multiculturais‘ do passado é que não são menos distorcedoras do que as difundidas pela historiografia nacionalista, a qual ‘descobria‘ episódios ‘nacionais‘ no período medieval e pré-medieval. Como é bem conhecido e criticado, no apogeu dos nacionalismos europeus o passado era frequentemente reinterpretado à luz do presente, ou seja, da ideologia nacionalista da época. Hoje estamos perante um fenómeno similar: o que mudou foi a ideologia dominante. Impõe-se, por isso, adoptar uma similar dose de saudável cepticismo, como aquela que foi adoptada face à narrativa da historiografia nacionalista. Neste sentido, o livro traz um contributo relevante.
OBS: O texto corresponde, com pequenas modificações, à recensão publicada na revista Crítica
JPTF 2008/05/01

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