junho 25, 2007

"Debate público sobre a Europa: escasso e manipulado" in Público, 23 de Junho de 2007


por Pacheco Pereira

Uma das matérias sobre as quais em Portugal não temos um verdadeiro debate público é a Europa. Pode parecer estranho que tal debate não exista, com os jornais cheios de anúncios de colóquios, conferências, mesas-redondas, seminários sobre a Europa, e televisões, rádios, jornais com maior peso de artigos, programas e debates sobre a mesma matéria. Se se olhar com atenção, muitas destas actividades são financiadas, ou co-financiadas ou apoiadas de alguma maneira pelos gabinetes nacionais das instituições europeias, Comissão Europeia e Parlamento Europeu.

Estas instituições e outras que lhes são subsidiárias mantêm igualmente programas regulares de televisão e rádio, actividades escolares, prémios e concursos, publicações em número considerável, desde banda desenhada a ensaios, discos com orquestras "europeias" juvenis, que, aliás, também são subsidiadas, um canal de televisão "europeu", a Euronews, e mil e uma iniciativas menos conhecidas e pouco transparentes, dirigidas em particular aos jornalistas e aos "fazedores de opinião". Digo pouco transparentes, porque muitas vezes os resultados de iniciativas "jornalísticas" pagas com dinheiro europeu acabam por ser publicados em jornais e passados nos outros media, sem se perceber a diferença entre essas encomendas e um trabalho jornalístico ou de reportagem normal. Até os deputados europeus têm uma verba para convidar jornalistas e só quem saiba do que se trata, uma ínfima minoria de directamente interessados, é que consegue perceber por que razão de vez em quando obscuros deputados têm direito a artigos sobre a sua actividade europeia. Trata-se no seu conjunto da mais gigantesca máquina de propaganda existente na Europa, muito eficaz em muitos países como Portugal, exactamente porque não é vista como tal.

Como qualquer outra máquina de propaganda, ela selecciona o que é "positivo" e tenta minimizar e ocultar o que é negativo. Ela fornece uma imagem doce, altruísta, pacífica, progressista, moralmente superior e intangível da construção europeia, completamente higienizada dos factos problema e que faz uma política que nunca nomeia, para poder demonizar todos os que entendem que, tratando-se de políticas, de decisões e escolhas políticas, elas não podem ser apresentadas sem se perceber a política, ou seja, não devem numa democracia ser servidas aos cidadãos como "pensamento único", liofilizado da política, ou seja, como propaganda. Uma das razões pelas quais se nota que se trata de propaganda está no apagar das fracturas estratégicas de pensamento político sobre a Europa a favor de um debate que se pretende interno, meramente táctico, de discussão apenas de nuances dentro de um consenso artificial.

No caso português esta imposição do "consenso" é tanto mais grave quanto no sistema partidário não existe oposição ao europeísmo constitucional dos últimos anos, com PS, PSD e PP do mesmo lado, apenas com o PCP como oposição consentida, porque inócua. No último Prós e Contras, a mesa que é suposto representar uma contradição, lá tinha de um lado o poder europeu, Durão Barroso, solitário na sua representação institucional majestática, logo acima do debate, e do outro Mota Amaral e Carlos Carvalhas, nenhum dos quais interessado em obrigar Barroso a ter que responder a perguntas que não fossem ou "de dentro" ou de cartilha, nenhum com o animus que é necessário ter para um debate ser a sério.

Há muitos exemplos de como se cria um "pensamento único", o ideal da propaganda. Darei apenas um: a afirmação mil vezes repetida, como se fosse um facto inquestionável, de que foi o voto "não" dos franceses e holandeses à Constituição europeia que criou o "impasse europeu". Nunca, jamais, em tempo algum, se diz que foi uma má "Constituição", um mau tratado, uma construção de engenharia política sem pés na realidade e sem cabeça na prudência dos pais fundadores, que provocou o "impasse europeu". Logo, como não se pode mudar os povos, há que os afastar do processo de decisão para impedir que eles produzam ruído "populista", de ser "contra a Europa por questões mesquinhas de política interna", de ter "medo", mais uma série de coisas menores, que justificam que se esteja a preparar uma versão do mesmo tratado que recebeu o "não", apresentado como um remendo de somenos que não precisa de ir a referendo, mas pode ser decidido apenas num Conselho Europeu e ratificado sem grandes ondas pelos governos e parlamentos "consensuais" sobre a Europa.

Veja-se o caso português, ainda mais exemplar pela debilidade da vida pública nacional. Há uns meses que se ouve falar vagamente de um "tratado abreviado", de um "minitratado", de um acordo institucional para substituir o tratado de Nice. O que acontece com o tratado de Nice é já exemplar do mecanismo de esquecimento e apagamento da história típico da propaganda. Quando se nomeia Nice, o que aliás acontece raras vezes para acentuar o esquecimento, parece que esse tratado foi feito por algum ET, não tem autores, nem responsáveis e ninguém parece ter votado o seu texto. Ora o tratado de Nice, que também Portugal aprovou sem reservas, foi feito pelos mesmos autores da Constituição europeia, e tinha sobre ela o grande mérito de ser mais despido de retórica e mais atreito à "nudez forte da verdade": era um compromisso de hard power puro e duro, que traduziu uma conjuntura europeia e que todo este mambo-jambo do "minitratado" quer alterar. É essencialmente isto que está em causa: quem manda na Europa, sob a forma moderna do direito de bloquear, mais do que sobre a forma antiga do direito de decidir.

Nada há de mais político do que isto, nada há de mais decisivo para as nações europeias do que a medida institucional do seu poder, e é por isso que nações como a Polónia e o Reino Unido são contra e são demonizadas na propaganda por o serem. Os motivos ingleses são sempre apresentados como sendo fruto de uma excentricidade qualquer, do seu eurocepticismo, ou seja, do facto de eles terem uma ideia sobre a construção europeia que não é a do gaullismo, reconstruído no eixo França-Alemanha e hoje ultrapassado pela crescente aisance alemã, libertada das sombras que menorizavam a sua política externa. Ora é exactamente o facto de o tratado que se prepara garantir que a Alemanha tem um poder de veto virtual sobre tudo que preocupa a Polónia. Isto é apenas o emergir mais visível do mapa dos conflitos europeus da primeira metade do século XX que está à tona, com todos a olhar para o lado como se não estivesse lá. Lá nos países bálticos, na República Checa, na Roménia, lá na pacífica Dinamarca, nos Balcãs, e não é com uma demonização dos motivos polacos que se resolve o problema e se enterra a história.

O que a propaganda nunca quer admitir é que todo este processo dos últimos dez anos europeus foi mal conduzido e levou naturalmente aos impasses actuais, nunca quer admitir que existe um fosso crescente entre o "europeísmo" de engenharia política supranacional vertido na Constituição e a vontade política de povos e nações, e quer impedir a todo o custo um maior controlo da burocracia de Bruxelas pelos parlamentos e eleitores. O que é que aconteceria se os eleitores europeus entendessem que não tem qualquer sentido haver um Euronews, gabinetes nacionais da Comissão, agências europeias inúteis e burocráticas distribuídas como benesses pelos diferentes países, e considerassem uma patetice haver legislação europeia sobre os implantes mamários e máquinas de jogo nos casinos? A verdade é que a burocracia de Bruxelas não é uma invenção dos eurocépticos ingleses, mas um problema da democracia na Europa.

Ora, no meio disto tudo, muito pouca gente em Portugal questiona o que o Governo pode ou deve fazer sobre esta matéria, mesmo que se admita que seja pouco, e a oposição basta-se em ter umas audiências privadas e vir depois anunciar uma moratória absurda sobre a discussão quando ela é mais necessária, como se estes assuntos europeus estivessem acima da política vulgar e não devessem ser discutidos pelos cidadãos, a quem não se dá, aliás, sequer o direito de saber o que é que se anda a decidir sobre esta matéria. É por isso que o défice democrático é maior em Portugal do que no resto da Europa.
http://abrupto.blogspot.com/
JPTF 2007/06/25

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