Cinquenta anos após o Tratado de Roma, assinado a 25 de Março de 1957, o projecto europeu está numa fase de indefinição. Neste contexto difícil, quais as implicações da adesão da Turquia para o futuro da União?
1. Provavelmente o aspecto mais crítico da actual União Europeia (UE) é a indefinição de rumo no projecto europeu. Qual o objectivo último da integração? Um grande mercado comum com uma moeda única? Uma potência político-militar mundial? Uma Europa federal? Ou uma confederação de Estados soberanos? Mas há um outro aspecto também importante, que passa mais despercebido, e que hoje está em aberto. Historicamente, a UE tem funcionado com base num equilíbrio político e financeiro entre “grandes” e “pequenos/médios” países, entre contribuintes líquidos e beneficiários de ajudas estruturais. O cerne deste equilíbrio tem sido este: os países grandes (os caso mais óbvios são a Alemanha e a França, mas também o Reino Unido) têm um peso fundamental na decisão política – visível, por exemplo, nas votações por maioria qualificada do Conselho (ligado directamente à sua população, desde o Tratado de Nice). Em contrapartida, uma parte significativa dos países pequenos/médios são os tradicionais beneficiários das ajudas estruturais (por exemplo, Grécia e Portugal, aos quais acresce, agora, a generalidade dos doze novos membros, Bulgária e Roménia já incluídas). Por outras palavras, e na linguagem crua da realpolitik, quem paga (o benefício dos outros) é também quem decide (politicamente).
2. Foi neste contexto, marcado pelo maior alargamento de sempre e por um ambiente internacional conturbado, que surgiu a questão da adesão da Turquia. Vários argumentos têm sido avançados sobre as vantagens desta: i) vantagens estratégicas de ter um grande país situado numa zona geopolítica importante; ii) vantagens de abastecimento energético ligadas ao acesso ao petróleo e gás natural; iii) vantagens de um mercado que já tem mais de 70 milhões de consumidores; iv) vantagens de uma mão-de obra jovem e em quantidade significativa; v) vantagens para evitar o “conflito de civilizações” com o Islão. Vale a pena analisá-los. Em primeiro lugar, as vantagens estratégicas. É indiscutível que a Turquia se encontra numa zona geopolítica importante. Aliás, por isso mesmo, é um membro antigo da NATO. Mas qual a vantagem estratégica como membro da UE? Vai permitir uma política externa e de defesa mais credível, pode argumentar-se. Mas será crível que, com cerca de trinta membros, a UE possa conseguir os consensos necessários para tal política, quando, no passado, não os conseguiu? Para além disso, e exceptuada uma evolução extraordinariamente favorável no Médio Oriente, os “ganhos” previsíveis são passar a ter, como vizinhança, um país com ambição nuclear (o Irão), outro envolvido conflito sectário violento (o Iraque) e um terceiro empenhado em destabilizar o Líbano (a Síria). Em segundo lugar, o argumento do acesso ao petróleo e ao gás natural. Importa notar que a Turquia não é um produtor e fornecedor relevante. Assim, se o argumento é ter membros com grandes recursos energéticos, então deveria integrar-se a Rússia, o Azerbaijão, ou o Cazaquistão. Se a questão é da passagem desses recursos, a Turquia já está associada à UE, através de um acordo de integração económica. Para além disso, está ligada militarmente pela NATO, da qual são membros a maioria dos países da UE. Não se percebe a razão pela qual estas soluções deixaram de servir. Quanto ao terceiro argumento, o do mercado de mais de 70 milhões de consumidores, este esquece o já referido acordo de união aduaneira, que vigora desde os anos 90, e abriu o mercado turco às empresas da UE, como também abriu o mercado europeu às empresas turcas. Em relação ao quarto argumento, se a necessidade é de mão-de-obra qualificada, países como a Ucrânia e a Rússia têm população mais qualificada. Se a necessidade é de mão-de-obra jovem, não qualificada e barata, há todos os dias centenas de emigrantes do Magrebe ou da África subsariana a tentarem vir para trabalhar para UE. Por que não deixá-los vir trabalhar? Quanto ao quinto argumento, que é o de evitar o “conflito de civilizações”, é simplista pela visão essencialista da realidade. Sendo o Islão heterogéneo – sunitas e xiitas são apenas uma faceta dessa heterogeneidade –, e existindo clivagens religiosas importantes (entre o Islão ortodoxo e as “seitas heréticas”, aluitas, alevis, druzos, etc.) e étnicas (árabes, persas, curdos etc.), é ingénuo acreditar num “apaziguamento civilizacional”. Mas há um risco verosímil, que é o de importar rivalidades. Apenas um exemplo. Nem países xiitas como o Irão, por razões religioso-políticas, nem países árabes como o Egipto e a Arábia Saudita, por razões históricas e ambições políticas, aceitarão uma primazia turca.
3. O argumentário usual, aparentemente convincente, que ouvimos num país pequeno e atlantista como Portugal mostra-se frágil, pois a Turquia já está integrada num quadro euro-atlântico (união aduaneira e NATO). Na realidade, são semi-vantagens mitigadas com riscos estratégicos. Para além disso, o up-grade da integração na UE é percebido pela França, Alemanha, Holanda, Áustria e outros países, como sendo-lhes desfavorável na decisão política, nos encargos financeiros e no futuro do projecto europeu. Tudo isto vai muito para além da questão da abertura dos portos e aeroportos turcos ao tráfego cipriota (e da própria reunificação de Chipre), que se discutiu em finais de 2006. Estamos a assistir ao primeiro round de um longo jogo diplomático, onde a estratégia, de ambos os lados, é afastar o ónus da quebra das negociações e, da parte turca, aproveitar-se ainda das divisões e do sentimento de culpabilidade europeia. Mas há uma incontornável questão de realpolitik: alguém está a ver a UE a funcionar num modelo onde quem paga mais (a Alemanha e a França), perde poder de decisão política para o principal beneficiário das ajudas financeiras (a Turquia)?
JPTF 2007/03/1
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